Alçada a 'Opep da cultura', a Comissão Europeia propõe programa de fomento às artes em geral, na contramão da pindaíba, reinante
Nas grandes crises econômicas, a cultura é sempre uma das primeiras
vítimas, senão a primeira sacrificada no altar orçamentário. "Aqui é
diferente", apregoavam os espanhóis até pouco tempo atrás, sem
evidências em contrário. Até que em meados do mês passado, premido pela
crise em curso, o governo espanhol fechou aquele centro cultural de
Avilés, projetado por Niemeyer e ainda novinho em folha, e anunciou um
corte de 50% nas verbas destinadas a museus e às artes em geral. Sem
crédito na praça e com um dos mais elevados índices de desemprego da
zona do euro, a Espanha, após três décadas de bonança financeira e
fulgor cultural, não faz mais a diferença.
A Alemanha pode fazer. Não porque viva uma ressurreição cultural
comparável à da Espanha pós-franquista ou de muito crédito ainda
disponha na praça, mas porque, além disso, tem há seis anos um ministro
da Cultura de se tirar o chapéu. Bernd Neumann, que nesta sexta-feira
chegou aos 70, talvez nunca se torne tão famoso quanto Malraux ou Jack
Lang, mas boa parte da Europa já o conhece de nome e por façanhas nada
modestas, como, por exemplo, convencer a durona Angela Merkel, com a
crise já fazendo estragos no continente, a investir € 50 milhões (R$ 118
milhões) a mais em cultura.
Semana atrasada, Neumann criticou a queda de nível da televisão
pública do país. Fez um discurso contundente contra a sujeição de canais
sem compromissos comerciais à estupidez reinante nos concorrentes.
Merkel deveria emprestá-lo aos países vizinhos. E também ao Brasil.
Para Neumann, o bem mais precioso da Europa, seu maior capital de
giro, é a cultura. Há três meses, na abertura do Congresso Europeu de
Cultura, na cidade polonesa de Wroclaw, o filósofo Zygmunt Bauman rufou o
mesmo tambor. "O futuro da Europa depende da cultura", proclamou o
teórico da "liquidez" (não no sentido econômico) do mundo moderno,
preludiando um arrazoado sobre a "babelização" do planeta, cada vez mais
"um arquipélago de culturas", a seu ver carente de uma "nova Biblioteca
de Alexandria", capaz de armazenar tudo que o "mosaico de diásporas" em
curso vem produzindo.
Além de propor a criação de um "sistema integrado de traduções", que
no mínimo tiraria uma legião de tradutores do desemprego, Bauman sugeriu
aos presentes que se abstivessem de ver televisão durante os quatro
dias do congresso, "para não se contagiarem pelo pessimismo". Mesmo 13
mil km distante de Wroclaw, acatei a recomendação do filósofo, e até
hoje não abandonei a dieta.
A partir do segundo dia, tomou conta do congresso a interminável
discussão sobre as diferenças entre arte (realização individual) e
cultura (contribuição coletiva), recursos públicos e privados (ambos
derivam de nossos impostos, certo?), mas sem sacrifício da questão
central: como trazer a cultura para o centro do discurso social e
econômico da nova sociedade? A certa altura, alguém lançou uma proposta
de slogan: "A cultura é o petróleo da Europa".
No início da semana, a Comissão Europeia, alçada à condição de Opep
da cultura continental, propôs um programa de fomento às artes em geral
na contramão da pindaíba reinante. Batizado de Europa Criativa, é um
projeto de perfil germânico, à altura do € 1,2 bilhão que Bernd Neumann
tem em caixa para incrementar as atividades culturais na Alemanha. No
total, será €1,8 bilhão alocado em artes visuais e performáticas,
cinema, música, literatura e arquitetura, nos países da Eurozona, ao
longo de seis anos. A desova começará em 2014 e beneficiará cerca de 300
mil artistas. Falta o principal: a concordância de todos os governos em
abrir mão de recursos para gastos tidos como mais prementes até por
quem considera a arte mais duradoura que a vida.
A despeito do ceticismo de uns ("o programa não estimulará a
economia") e outros ("é ingenuidade supor que a arte possa arrefecer as
tensões num mundo tão dividido como o nosso"), prevalece o otimismo dos
que se comprometeram com a ideia de que aproveitar e estimular o
potencial criativo das pessoas é um caminho seguro - e o mais digno -
para se alcançar as metas de crescimento sustentável, de empregos e
coesão social previstas para 2020.
Tão ou mais árduo será despertar o interesse da iniciativa privada em
participar desse mutirão com uma nova mentalidade. Critérios de seleção
pessoais e mercadológicos não terão vez. Mas como lidar com as
corporações que criaram as próprias linhas de crédito cultural e pautam
suas escolhas de olho no mercado? "O lucro fácil não pode ser o objetivo
de quem financia o que quer que seja usando incentivos fiscais",
interveio na discussão o artista plástico Dexter Dalwood.
Um dos muitos ingleses preocupados com a situação peculiar de seu
país na crise econômica, Dalwood receia que artistas do Reino Unido não
sejam contemplados pelo Europa Criativa por causa da oposição do
primeiro-ministro David Cameron ao tratado econômico firmado mês passado
e do crescente isolamento da Inglaterra da Europa continental. Um dos
cardeais da Comissão Europeia já desfez tais rumores. "Não haverá
retaliações", prometeu. Mas algumas barbas continuam de molho.
O euro teve, essa semana, sua maior queda frente ao dólar nos últimos
15 anos. Embora ancorada na libra, a "velha e pérfida Albion" não tem
muito do que se vangloriar. Os mais recentes dados sobre o ensino no
Reino Unido são esmorecedores: cortes profundos no orçamento e demissões
em massa de professores, com destaque para os que ensinam arte, música e
atividades artísticas afins. O governo Cameron não parece, pois, muito
inclinado a investir em cultura, além da fortuna que enterrou nas
Olimpíadas de Londres.
Também nisso os ingleses se diferenciam dos franceses. Nenhum outro
povo acredita mais em seu "petróleo cultural" que os franceses. Boas
razões não lhes faltam. Em 2010 o Museu do Louvre recebeu 5% a mais de
visitantes que no ano anterior. Foram quase 9 milhões de visitantes,
praticamente o dobro dos que pisaram no Museu Metropolitan de Nova York.
Fonte: Sérgio Augusto - Estadão
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